sexta-feira, 23 de maio de 2014

A vida como ela é: cada filme evidencia, a seu modo, a densidade das complexas relações familiares

Konrad (Clemens Schick), Donato (Wagner Moura) e Airton (Jesuíta Barbosa) no drama de Karim Aïnouz: amor e abandono
Um é cearense, o outro iraniano. Os diretores de cinema Karin Aïnouz e Asghar Farhad mostram ao grande público seus mais recentes trabalhos: “Praia do Futuro” e “O Passado”, respectivamente. Cada um ao seu modo evidencia a densidade das complexas relações familiares. São as pedidas da vez.


“Praia do Futuro”, filme do premiado diretor cearense Karin Aïnouz (o mesmo do emblemático “Madame Satã”) de coprodução Brasil-Alemanha, chega às telonas brasileiras nesta segunda quinzena de maio já aclamado pela crítica internacional. Recebeu menções honrosas no último Festival de Berlim e ganhou elogios contundentes da Variety e Screen International, algumas das mais prestigiadas publicações do segmento de cinema no mundo.
E se você não viu e nem ouviu nada por aí sobre “Praia do Futuro”, deixo aqui minha dica: vá assistir ao filme, mas não veja o trailler antes. Simplesmente porque ele não faz jus à grandeza do trabalho de Aïnouz. Toda a adrenalina, o comportamento nervoso dos atores, a música forte e a impressão de que haverá muita ação não são refletidos no filme de fato. E isso eu, particularmente, vejo como uma vantagem. Praia do Futuro é muito mais uma história de amor e de família, de culpa, de abandono e de perdas. O roteiro impecável é do Felipe Bragança e a trilha sonora pop emociona no tempo certo, abusando do ritmo de Heroes, de David Bowie.

Destaque para a excelente fotografia - as locações na Alemanha e o cenário do litoral do Ceará são de tirar o fôlego - tendem a criar movimentos de câmera longos, com poucos cortes e que pode até parecer meio arrastado para quem está acostumado com um ritmo à Schwarzenegger, mas que cai muito bem ao estilo europeu ou brasileiro cult.
Outro adendo que faço é em relação a um pré-julgamento equivocado do filme, que desmereceu o seu bom conteúdo, sendo rotulado como filme gay. Ok, os protagonistas são gays, o filme tem cenas demasiadas de nu frontal e sexo homossexual, mas apesar do excesso desnecessário esse rótulo não é justo com a obra. O filme é bem maior que isso. O próprio Wagner Moura, na coletiva de lançamento à imprensa em São Paulo, disse “Donato é um personagem complexo, ele tem muitos elementos. Ser gay é só um deles".
Aliás, vamos à história: Donato (Wagner Moura) é um salva-vidas da Praia do Futuro, na capital cearense, destemido e um verdadeiro herói para o irmão Airton (Jesuíta Barbosa). Um dia, ele conhece seu futuro parceiro, o motociclista alemão Konrad (Clemens Schick, americano bem manjado em filmes europeus) numa situação extrema: o turista é salvo de um afogamento por Donato. Mas, seu companheiro de viagens não tem a mesma sorte. O herói é quem dá a má notícia a Konrad.

E começa aí uma paixão avassaladora entre os dois. Começa aí também o drama familiar. Airton, o irmão mais novo, é quem mais sente o abandono quando Donato foge para a Alemanha com o namorado. Anos depois, o reencontro dos irmãos reserva uma enxurrada de emoções e de reflexões. Atenção ao último terço final do filme que guarda para o espectador uma imagem sequencial de tirar o fôlego.


“Le Passe”, título original do filme de Asghar Farhadi, é dono de um enredo difícil, porém fácil de ser acompanhado. Nem o ritmo lento dos takes, nem a fala mansa dos atores quebrada por discussões familiares agudas, consegue dar a percepção real dos mais de 130 minutos do filme. Passa tão rápido quanto passam as culpas pelo passado, os temores pelo futuro e a complexidade de uma relação familiar cercada de segredos. Farhardi, que é considerado o maior diretor iraniano de todos os tempos, tentou dar ao “O Passado” o mesmo tom dos consagrados “À Procura de Elly” e “A Separação”, suas obras-primas. A maior especialidade dele é criar um universo realista e povoado por indivíduos complexos e de bom caráter que, com frequência, se agridem por dilemas cotidianos que todos nós identificamos.
Nessa história, ele fala de Ahmad (Ali Mosaffa), que após quatro anos de separação chega a Paris vindo do Teerã, a pedido de Marie (Bérénice Bejo), a sua esposa francesa, para se divorciarem legalmente. Durante a sua breve estadia, Ahmad descobre a relação conflituosa que Maria tem com a filha mais velha, Lucie. Enquanto Ahmad se esforça para tentar melhorar esse relacionamento, irá descobrir segredos bem guardados do passado de cada uma das personagens. A revelação dos segredos e dramas, pouco a pouco vai prendendo a atenção de quem acompanha a história, mas nota-se que o diretor perde a mão no foco dos personagens. Nenhum deles tem sua índole revelada plenamente, nem seus objetivos à sua exatidão, e ninguém permanece protagonista por mais de vinte minutos. Assim como em todas as famílias, é legal ver também que nem todos ali são inocentes, assim como não há quem seja apenas vítima.
Nessa engrenagem de drama familiar há um certo suspense, mas é uma pena que ele se utilize de reviravoltas forçadas e de alguns personagens monossilábicos e sem nuance, como é o caso da filha problemática e do ex-marido e também ex-deprimido. A fotografia do filme não é bonita, mas é muito bem feita, realista. Não há um take sequer que você identifique Paris, por exemplo, mas com certeza você vai se incomodar com os detalhes da casa mal pintada e da cozinha pouco organizada em que a família faz as refeições. A mesma realidade pode ser vista dura e crua na trilha. Eu não me lembro de nenhuma música do filme – na verdade nem sei se tinha – mas é marcante o aúdio do trem que passa praticamente na janela da casa da família, do barulho chato da lavadora de roupas, do motor do carro emprestado que vai buscar Ahamad no aeroporto, quando ele reencontra a mulher para acertar o divórcio e onde tudo começa.
Em cartaz:
Paradigma Cine Arte
O Passado - 2013, França/Itália, 131 minutos, elenco: Bérénice Bejo, Tahar Rahim, Ali Mosaffa
Praia do Futuro – 2014, Brasil/Alemanha, 90 minutos, elenco: Wagner Moura, Clemens Schick e Jesuíta Barbosa

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